A revolução será televisionada, com 12 câmeras exclusivas no pay-per-view

Certa noite, ao trocar os canais da TV, deparei-me com um programa bastante curioso, o qual relato abaixo, com a maior riqueza de detalhes possível.

Auditório repleto. Diversas assistentes de palco belíssimas, em trajes sumários, sacolejam pra lá e pra cá. O apresentador, um sujeito de meia idade, cabelos revoltos, sorrisão no rosto, entra em cena, sob uma chuva de aplausos.

-Boa noite, Brasil!

O auditório aplaude ruidosamente.

-Hoje vamos receber aqui a Lina, uma salva de palmas para ela!

A tal Lina entra no auditório. É uma mulher bastante comum. A plateia aplaude, não tão ruidosamente.

-A Lina resolveu nos procurar porque ela está desconfiada do marido, é isso mesmo, Lina?

-É verdade, João. Ultimamente ele mudou muito. Já não é mais o mesmo.

-E então você quer que ele passe pelo teste?

-Exatamente.

No rodapé da tela, a legenda diz, em letras garrafais LINA DESCONFIA DO MARIDO E ALGO MUITO GRAVE VAI ACONTECER NESSE TESTE.

-Você confia no teu marido, Lina?

-Olha, já confiei mais.

-Bom, vamos assistir ao teste. Pode rodar.

A imagem corta para um sujeito de camisa e gravata parado em uma esquina. A legenda agora diz: SEDUTORA PROVOCA O MARIDO E ELE VAI FAZER UMA LOUCURA.

Eis que surge, sei lá de onde, uma mulher estonteante. Um perfeito arquétipo de beleza, uma Galatéia da era do vídeo. Os pescoços se retorcem à sua passagem, pastas são derrubadas, cotoveladas de namoradas/esposas ciumentas são distribuídas. Ela se aproxima do sujeito de camisa e gravata, o marido da tal Lina.

-Oi. – e dá o sorriso mais adorável que alguma vez se viu.

O sujeito mostra-se imediatamente solícito. Ela pede um cigarro, ele dá. Começam a conversar, ele se esforça pra ser engraçado, ela ri.

A tela se divide para mostrar a situação no auditório. Lina, coitada, já parece um tanto quanto nervosa.

O apresentador cutuca:

-Lina, você tem certeza que quer continuar vendo?

A voz dela já está um pouco alterada:

-Tenho, João. Quero ir até o final, quero ver o que esse sem vergonha vai fazer.

Na tela maior, o marido continua cheio de sorrisos. A legenda mudou novamente: MARIDO PERDE A CABEÇA POR CAUSA DE SEDUTORA E ALGO MUITO SÉRIO VAI ACONTECER.

Ela termina o cigarro que o sujeito ofereceu. Estende pra ele a bituca e pede, toda sorrisos e voz melodiosa:

-Joga isso fora pra mim?

O marido olha em volta, visivelmente em busca de uma lixeira. Avista uma, mas do outro lado da rua. Evidentemente não quer deixar sozinha ali na esquina a deusa que, sabe-se lá por que sortilégios do destino decidiu engatar uma conversa com ele. Retém a bituca na mão e continua a conversa.

A “sedutora” saca da bolsa um saco de amendoins já quase no final. Oferece ao marido, ele recusa. Ela termina de comer, estende a embalagem pro sujeito e pede, mais sorridente e mais melosa do que da outra vez, que jogue fora. E pergunta porque ele não jogou a bituca.

Ele se explica, meio sem graça, que a lixeira está do outro lado da rua. Ela, com toda a naturalidade, diz:

-Ai, mas joga aí no chão mesmo.

A imagem congela. Estamos de volta ao estúdio, agora em tela inteira, a plateia faz barulho, o apresentador parece chocado, a esposa indignada.

-Lina, você quer mesmo continuar assistindo?

-Eu quero ver o que esse safado vai fazer!

O apresentador hesita.

-Olha, talvez fosse melhor parar.

A legenda mudou para O QUE VAI ACONTECER NESSE TESTE É INÉDITO E MUITO GRAVE.

-De jeito nenhum! Eu quero ver tudo!

O apresentador anda pra lá e pra cá. Parece indeciso.

-Olha, Lina, o que acontecer é responsabilidade sua. Eu não me responsabilizo.

Ela insiste que quer continuar vendo. O apresentador, parecendo ao mesmo tempo satisfeito e triste, manda que o teste prossiga.

O marido, bituca e saco de amendoins na mão, hesita. Olha para a lixeira do outro lado da rua, olha de volta para a sedutora. Ir até a lixeira pode significar abrir mão da mulher mais linda que jamais engatou conversa consigo. A tela se divide para mostrar o suspense no estúdio: a eletricidade no ar é visível, o apresentador tem os olhos esbugalhados, a esposa está prestes a chorar, a plateia parece estar diante de um filme de terror.

A sedutora pressiona:

-Ai, joga essas coisas fora logo, que feio você segurando esse lixo.

A vontade férrea do marido esmorece, e ele lança ao chão a bituca e o saco de amendoins.

É uma catarse. O apresentador grita “MEU DEUS, MEU DEUS”. O choque na plateia é visível. A esposa chora e esbraveja, “esse vagabundo, não acredito nisso”. Na outra metade da tela, a sedutora e seu sorriso angelical comunicam ao marido:

-Você acabou de participar do Teste de Civilidade.

Voltamos ao estúdio. O marido entra, tenta se justificar, diz que o lixo caiu da mão dele, que não foi de propósito. Ninguém acredita. A esposa o chama de hipócrita: “você que sempre brigou comigo porque eu não fazia a coleta seletiva dando um papelão desses!”. A plateia esbraveja contra o pobre homem ludibriado, a esposa tenta agredi-lo e é contida pelo apresentador e alguns seguranças. O caos se instala no estúdio. O público delira. A audiência, suponho, bate nas alturas.

Isso dura por cerca de dez minutos, até que finalmente Lina e seu marido, submetido ao vexame em rede nacional, deixam o programa. O apresentador chama um intervalo comercial, mas antes mostra trechos do próximo teste: um sujeito está uma padaria tomando seu café quando uma deusa o aborda. A legenda diz SEDUTORA PEDE QUE MARIDO NÃO DEVOLVA TROCO A MAIS E ALGO MUITO GRAVE VAI ACONTECER.

No próximo bloco.

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