O Caos reina (uma recordação vívida)

Depois de alguns anos sem qualquer notícia, a reencontrei no local mais improvável de todos: um café que eu não frequento, numa rua por onde eu nunca passo. E eu nem mesmo gosto de café.

Um encontro fortuito, jamais marcado, fruto apenas do Caos, esta que é a grande força regente do Universo, uma presença tão poderosa e onipresente que muitos a confundem com deuses.

Sou incapaz de recordar que assuntos me levaram àquela rua, e menos ainda porque eu decidi que era uma boa ideia entrar no café. Pode ter sido o frio: era inverno, um inverno estranhamente rigoroso, o vento não dava descanso, talvez eu tenha entrado em busca de um pouco de calor. Ou pode ser que não houvesse motivo algum, que o livre arbítrio seja só uma mentira elevada à condição de verdade pela repetição excessiva, que eu estivesse apenas obedecendo aos desejos do Caos, e não aos meus.

Não importa.

O fato é que entrei no tal café. Não tenho certeza se pela primeira vez, e não me recordo se voltei posteriormente. Surpreendeu-me um pouco o fato de estarem ali algumas pessoas; talvez a rua não fosse tão deserta quanto eu julgava. Ou talvez essas pessoas ali estavam somente para testemunhar o encontro que ocorreria logo mais. Talvez tenham pagado ingresso, e aguardado ansiosamente pelo momento.

Entrei, me sentei numa das mesinhas, pedi um café; tudo dentro da mais perfeita normalidade. Foi quando a porta se abriu.

Era ela.

Fazia então alguns anos que não a via, mas a reconheci de imediato. Ela estava mudada. Ela continuava a mesma. Lá estavam os óculos escuros, mesmo num dia sem luz. Lá estava o casaco cor de vinho, exatamente como eu me lembrava. O jeito de andar, um pouco hesitante e apressado ao mesmo tempo. O barulho dos seus saltos contra o chão. O perfume que eu estava muito longe pra sentir, mas sabia, apenas sabia, que continuava o mesmo.

Ela atravessa o local, senta-se no balcão, pede um café. Acho que ainda não me viu. Me ocorre que talvez seja melhor pedir a conta e tentar sair antes que isso aconteça. Por outro lado, estou um tanto aturdido com esse encontro totalmente inesperado: não consigo retomar as atitudes da vida prática. Só tenho olhos, sou um observador deste momento, e não um participante (protagonista, na verdade) dele.

Quero que ela não me veja. Quero ir embora antes que ela possa me ver. Quero que ela me veja, mas não venha falar comigo. Quero me levantar, ir até ela e dizer qualquer coisa. Quero lhe dar um abraço. Quero desaparecer. Quero continuar aqui, neste lugar, neste tempo, neste dia, até que os próprios dias não existam mais.

Não sei quanto tempo levou até que ela notasse minha presença. O relógio diria que foram exatos três minutos, mas o que sabem os relógios? É um fato amplamente conhecido e aceito que o tempo se distende e contrai segundo regras misteriosas e particulares, e não há relógio capaz de entendê-las. Para o relógio, máquina boba que é, um minuto é sempre um minuto. E todos sabemos que um minuto, de fato, quase nunca é um minuto. Um minuto pode ser um dia, pode ser um ano, pode ser uma vida, pode durar até o final do tempo. E, eventualmente, pode até mesmo ser, somente, um minuto.

Por falta de uma medição mais imprecisa do tempo, diremos que levou três minutos até ela me descobrir. Notei em seus olhos a mesma surpresa que certamente estivera estampada nos meus, se é que ainda não estava. Desviamos o olhar. Eu lhe endereçava alguns olhares furtivos, e sei que ela fazia o mesmo.

Parece-me que ela não terminou seu café. Pagou a conta, levantou-se, ajeitou o casaco. Um gesto tão familiar, tão próprio dela, tão específico, que de repente eu não estou mais ali. Estou navegando um oceano revolto de memórias, enfrentando uma tempestade monstruosa, o naufrágio é iminente. Vou me afogar e morrer, este fato é tão certo que nem mesmo me desespero. Quando volto da tempestade, ela já está a meio caminho da porta. Ainda há tempo. Ainda posso me levantar, ainda posso ir até ela. Ainda.

Mas ela chega até a porta, abre-a, e o tempo acabou. Por um longo momento brevíssimo ela para, se volta, e olha pra mim. Diretamente nos olhos. Talvez ela tenha sorrido, mas não posso afirmar com certeza.

Finalmente ela deixa o café. Vejo-a descer a rua, em seu passo apressado-hesitante, o vento ondulando seus cabelos, até que finalmente ela é engolida pela luz pálida do dia.

Foi a última vez em que a vi.

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