As últimas notícias da guerra

Faz muitos anos que vivo nesta casa. O preço era bom, a casa é grande, a localização é excepcional.

Esta casa, contudo, tem uma particularidade que causaria terror em muitas pessoas. Esta grande, velha, confortável apesar de um pouco mal tratada casa, tem uma espécie de problema que alguns julgariam bastante incômodo.

Esta casa é habitada por fantasmas.

Não faz diferença se alguém acredita ou não em fantasmas. Eles são uma das verdades da vida. O sol se põe no fim de cada dia, os passarinhos quebram a casca do ovo para vir ao mundo, uma pessoa que for atingida na cabeça por um tiro de rifle morre. E fantasmas existem.

De forma alguma pretendo explicar os mistérios do além-vida. Viver tantos anos entre os fantasmas não me esclareceu nada. Não sei se há céu ou inferno, se há reencarnação ou arrebatamento, se Deus existe ou não. Essas questões são, pra mim, tão insondáveis quanto para qualquer outro. Conviver com fantasmas não me tornou mais versado nas grandes questões.

Não me parece que eles, os fantasmas, tampouco saibam o que quer que seja sobre metafísica. E, se sabem, não creio que eles o revelem a alguém. Fantasmas são bastante silenciosos. São criaturas discretas ao extremo, esqueça as velhas histórias de assombração, barulhos no meio da noite, objetos voando pela casa. Isso não passa de mitologia, material para vender filmes e livros.

Fantasmas são, praticamente, parte da mobília. Passam dias e dias no mesmo local, sem expressão, os olhos fixos em um ponto qualquer. Dificilmente me veem, e quando isso acontece é bastante provável que mudem de lugar, ou mesmo que deixem a casa em definitivo. São seres muito tímidos. Quando se movem, o fazem em silêncio, evitando ao máximo incomodar.

É raro que fantasmas conversem, seja entre eles, seja com os vivos. Não tem muito a dizer. Os assuntos dos vivos não os interessam, as notícias parecem vir de uma terra muito distante. E a rotina dos mortos, ao menos destes mortos, os que aqui permanecem, não é particularmente interessante.

Parece-me que eles pensam muito. Mas, em outros momentos, tenho a sensação de que estão sempre numa espécie de torpor, um sono sem sonhos ou reflexões. O fato é que estão quase sempre absortos em algum mundinho interior , numa espécie de autismo, uma autossuficiência perfeita e inabalável. Talvez reflitam sobre as vidas que tiveram. Talvez, sobre as vidas que queriam ter tido. Talvez passem os dias remoendo velhas culpas e arrependimentos. Devem sentir saudades dos que deixaram pra trás, ou talvez tenham se esquecido deles, e por isso ficam tristes. Porque eles, às vezes, ficam tristes. De vez em quando os vejo com expressão de pesar, vi mesmo alguns chorarem ao longo destes anos todos.

Não sei ao certo porque há tantos fantasmas nessa casa. Algo que aprendi nestes anos todos é que eles não estão presos a lugar nenhum. Há lendas sobre espíritos que se tornam prisioneiros do lugar onde morreram. Bobagem. Ninguém morre nessa casa há muito tempo, e os fantasmas continuam chegando. São livres para irem e virem, mas por alguma razão gostam de se fixar em um lugar específico. Alguns deles estão aqui desde antes da minha chegada. Outros chegaram depois de mim, e aqui estão até hoje. Outros tantos passaram e foram embora, e deles não tenho notícia.

Alguns deles quebram o silêncio e travam contato. Lembro-me de uma mulher que sempre vinha até mim quando eu estava sentado na varanda, em minha poltrona. Gosto muito de minha varanda, de lá consigo ver os passarinhos que descem ao jardim para caçar insetos. Consigo ver as nuvens em sua jornada preguiçosa céu afora. Consigo ver a lua e as estrelas.

Essa mulher vinha sempre no mesmo horário. Fantasmas não tem uma aparência específica. Não são pálidos, não são etéreos, não tem a pele meio podre, não carregam em si os ferimentos que os mataram, não usam a roupa que estavam usando quando morreram. Ver um fantasma é como ver uma pessoa qualquer, é uma experiência totalmente desprovida de assombro.

Bem, essa mulher vinha a mim sempre no mesmo horário, e conversávamos um pouco. Não tínhamos muito assunto, ou muito interesse um pelo outro, mas as conversas aconteciam. Um dia ela comentou:

-O tempo aqui passa de uma forma um pouco estranha.

Não respondi nada, mas achei que era verdade. De qualquer forma, não me preocupo muito com o tempo. Não tenho relógio. Não tenho porque ter um relógio.

A mulher que me visitava na varanda já não vem há algum tempo. Não sei dizer quanto. Alguns anos. Deve ter ido embora. Alguns vão, mas não sei estabelecer o porquê.

Algumas vezes pensei em me mudar. Não pelos fantasmas, que eles me incomodam muito menos do que os vivos em geral. Mas pela casa, grande demais pra uma pessoa sozinha, que nunca recebe visitas, feito eu. Apesar disso, gosto daqui. E o trabalho de me mudar causa-me, de antemão, um grande cansaço.

E tem a varanda. Meu lugar preferido no mundo todo. Sento-me em minha poltrona, e ali passo muitas horas, observando o curso do sol e das estrelas e os passarinhos que vem comer. Às vezes ligo o rádio e ouço algumas notícias. Ultimamente andam falando sobre uma guerra, não sei, não consigo prestar muita atenção. As notícias não me interessam.

Meus fantasmas –não são meus em absoluto, evidentemente – não me incomodam. E eu não os incomodo, não mais. Vamos vivendo em perfeita harmonia, em perfeito silêncio, em perfeita paz. Os compreendo muito pouco, conviver tanto tempo com eles não me faz mais sábio em relação a seus mistérios. Somos desconhecidos, mas nos toleramos. Essa casa também é deles, e eles me aceitam aqui, da mesma forma que eu os aceito. Talvez eles sejam os donos, e eu o hóspede. Talvez.

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