Fluxo de consicência I

Fui hoje a uma agência dos correios, e não para receber ou despachar encomendas, mas para enviar uma carta. Arrependi-me de tê-lo feito assim que pisei fora do prédio, mas tive vergonha de voltar ao guichê e solicitar o cancelamento. Consolo-me no pensamento de que o balconista, mesmo que me devolvesse a carta, não devolveria meu um real e vinte e cinco centavos, e a perspectiva de perder em vão essa vultosa soma me dissuadiu de vez.

Ganhei as ruas sem saber direito que rumo tomar. A luz outonal de fim de tarde tingia tudo de uma cor de ouro velho. Nas paredes, cartazes anunciavam bailes a fantasia, palestras de pastores, crédito fácil, apresentações de bandas cover. Na esquina da farmácia, um menino paralítico, na cadeira de rodas, as pernas tão fininhas que se poderia quebrá-las feito graveto.

Caminhei vagamente melancólico, sem saber direito o motivo. É muito possível que tenha a ver com o conteúdo da carta que ainda agora eu enviara. Mas talvez não. Melancolia é a consciência de ter perdido algo que não pode ser substituído. Eu perdi muitas coisas, e muitas delas não podem ser substituídas.

Há coisas que perdi por acidente, coisas que foram arrancadas de mim e coisas que eu simplesmente abandonei e não fiz questão de reaver. Uma camiseta branca que esqueci em outro estado, uma preta que deixei em outro país. Um toca discos que deixei na assistência técnica e nunca fui buscar. Uma máquina de cortar cabelo que ficou em território hostil. Livros que emprestei para pessoas que, hoje, preferiria morrer a falar com elas. Todas essas coisas talvez estejam ainda à minha espera, e talvez sofram por terem sido esquecidas. Talvez tenham encontrado outros proprietários. Talvez tenham sido destruídas. Eu jamais saberei.

Passo diante de uma lotérica, decido jogar na loteria. Logo eu, tão azarado, tão cético. Minha reluzente onça é pulverizada em uma pobre e rota fauna de bichos coloridos. Talvez eu ganhe um milhão. Talvez. Não sei bem o que eu faria com meu milhão, mas deve ser melhor ter um milhão do que não tê-lo.

Não sou rico, mas não tenho dívidas. Não tenho o peso que gostaria, mas não sou obeso. Não sou perfeitamente saudável, mas não diviso doenças incuráveis no horizonte observável. Minha vida, tal e qual essa tarde outonal, transcorre, certo que sem grandes emoções, mas sem sobressaltos. Então, por que me sinto tão vazio?

Nos últimos tempos, dois doutores elogiaram meus textos. Uma mulher linda foi para a cama comigo. A Copa do Mundo se aproxima, o tempo começou a esfriar. Tudo isso deveria dissipar a névoa dessa melancolia fininha, tal e qual xarope feito com pouquíssimo açucar que se derrama por sobre mim. Mas não adianta.

Talvez seja a perspectiva de coisas que eu perdi antes mesmo de obter.

Passo por um sujeito esfarrapado. Tem a bermuda molhada, torce-a como quem torce uma peça de roupa recém saída do tanque, gotas pingam na calçada. Passo por mais um sujeito esfarrapado. Me cumprimenta, não respondo. Deveria? Não tenho medo que me peça dinheiro, tenho por princípio dar dinheiro a qualquer um que me peça. Então por que não respondo seu cumprimento?

Num dos dias mais tristes da minha vida, um sujeito me pediu dinheiro. Não estava esfarrapado, ao contrário. Calça, camisa, gravata, cabelo bem cortado. Segurava uma pintura de Jesus. Contou-me, lágrimas nos olhos, uma história muito longa e muito triste sobre ter sido abandonado pela esposa. Queria dinheiro para voltar para sua cidade. Dei-lhe o que tinha de trocado, penso que quatro reais. Se acreditei em sua história? Claro que sim. Eu acredito em tudo que me dizem, e algumas vezes até mesmo no que não me dizem.

Outra vez, uma moça muito jovem e já muito gasta pelo tempo, me pediu dinheiro. Contou-me ser prostituta e ter vindo de outra cidade. Entretanto, apanhou das veteranas, que não quiseram concorrência estrangeira – mostrou-me os hematomas e marcas de mordidas e arranhões. Queria, também, voltar para sua cidade de origem. Dei-lhe algum dinheiro, não lembro quanto. Pensei em perguntar quanto ela cobrava, mas julguei que seria insuflar-lhe falsas esperanças e deixei insatisfeita a curiosidade.

Todo mundo parece estar querendo voltar para algum lugar ultimamente. Eu também. Mas os lugares para onde eu gostaria de voltar não me aceitariam. Não me adiantaria pedir esmolas ou contar histórias tristes. As portas de alguns lugares, uma vez fechadas, nunca mais se abrem.

Volto para onde não queria estar. A tarde vai morrendo aos pouquinhos, o céu agora tem uma cor azulada e metálica. Venta. Eu me arrependo definitivamente da carta que enviei, mas os correios já estão fechados.

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