Instruções para um funeral

Ao meu funeral, gostaria que comparecessem todas as minhas viúvas.

Que ninguém conclua, entretanto, que sou mormon ou reles canalha polígamo. Sequer sou casado, e não creio que alguma vez venha a sê-lo. Neste caso em particular, emprego uma interpretação muito livre e muito particular do termo “viúva”: são todas as mulheres com quem, para empregar uma vez na vida algum conhecimento obtido no curso de direito, mantive “conjunção carnal ou ato libidinoso análogo”.

É certo que muitas dessas mulheres já nem sequer lembram-se que eu existo. Outro bloco, também numeroso, me odeia tanto que só iria ao meu funeral para cuspir em meu cadáver. Mas imaginemos que por força de alguma convocação sobrenatural, todas elas não tenham remédio senão comparecer.

Deverão estar nuas, apenas a cabeça coberta por um véu negro. Esta ideia tomei emprestada de um túmulo que vi em dada ocasião, justamente acompanhado por uma das minhas futuras viúvas. Era um bloco maciço, penso que de cor verde escura. Em uma das paredes, um busto muito austero representando seu ocupante, um homem de feições severas, óculos redondos, bigode denso, olhar implacável. No topo do edifício, meia dúzia ou dez figuras femininas, nuas, desesperavam-se em orgiástico pranto.

Eu, que não teria dinheiro para empreender mausoléu desta envergadura, nem amigos engenheiros e escultores que, motivados apenas pela admiração que nutrem por mim, decidissem erguê-lo, contento-me com a presença de minhas viúvas.

Alguém poderá objetar que tal espetáculo seria uma indecência. Eu não poderia concordar ou discordar disso, pois estaria morto, e aos mortos é concedido o privilégio supremo da abstenção. Contudo, na condição de vivo, atesto não ver aí nada atentório ao decoro e aos bons costumes vigentes. “Mas pense nas crianças!”, ouço alguém espumando. Ora, quem haveria de levar uma criança ao meu funeral?, indago. Os pequenos devem comparecer única e exclusivamente aos funerais de seus avós ou bisavós. E eu, que não tenho filhos, como poderei ter netos e bisnetos?

Resolvidas as questões morais, ocupemo-nos dos assuntos de ordem prática, que há muitos. Reunir todas as convocadas, por exemplo, criaria algumas dificuldades. Primeiro, a distância geográfica. Seja lá qual for o palco de meu derradeiro ato, algumas das convocadas estarão muito longe, até mesmo espalhadas por outros países e continentes. Outro problema é a idade. Se, Deus nos livre, eu viver ainda por muitos anos, várias dentre as minhas viúvas já estarão mortas, ou então completamente incapacitadas quando do meu velório.

Também será necessário que elas apresentem um grande senso de civilidade. É certo que várias delas me odeiam, mas o que me preocupa de verdade é que algumas se odeiam entre si, a tal ponto que chego a temer que meu funeral seja cenário de atos que possam conduzir a outras cerimônias desta espécie. Por muito que possa parecer lisonjeira, e até mesmo erótica, a perspectiva de discussões acalaroadas e embates físicos violentos, lembremo-nos que os mortos não tem ego ou libido, de forma que não poderiam me agradar esses incidentes.

Prefiro, antes, uma atmosfera de absoluta tristeza, o ar pesado de luto, apenas soluços ocasionais quebrando o silêncio. Minhas viúvas formariam uma longa fila, aguardariam muito quietas, olhos vermelhos baixos à espera do momento em que me prestarão suas últimas homenagens. Mesmo as que, por razões quase sempre justas, me odeiam, acabariam me perdoando os malfeitos assim que estivessem frente a frente comigo. Lembrariam-se dos bons momentos que aquele corpo, ora apenas uma pilha macilenta de ossos e couro, as proporcionou, e sentiriam o ódio destilando-se em pesar e saudades. Penso que pegariam das minhas mãos descarnadas, as trariam junto ao seio descoberto, sussurrariam-me segredos no ouvido, acariciariam meus cabelos – se eu ainda os tiver. Não haveria tempo limite para as despedidas, que cada uma leve o quanto julgar necessário. Penso que uma ou outra possa apenas passar diante do caixão, lançando-me um olhar vazio, sem nem mesmo interromper o passo, tentando recordar-se de mim enquanto se afastasse, sem sucesso. E é possível que ao menos uma  efetivamente cuspisse em meu cadáver, mas saibam que eu a perdôo desde já, avisem-na quando for a hora.

Seria um espetáculo curioso este funeral. Quem tentasse encontrar um padrão nas mulheres ali presentes fracassaria, pois haveria brancas, negras e orientais; loiras e ruivas (artificiais ou não), intelectuais e operárias, conservadoras, comunistas e anarquistas; estrangeiras de longe e de perto, ostentando corpos de todas as configurações e formatos possíveis. Ninguém seria capaz de dizer qual tipo de mulher este escritor apreciava, e é melhor que seja assim. Prefiro manter, até mesmo na morte, algum mistério. Honro o mestre Lovecraft: nunca explico nada.

Quando finalmente chegasse ao fim a longa procissão, que talvez venha a se estender por dias a fio, seria hora de dar fim aos meus restos. Me agrada a ideia de um ritual canibalístico. Um açougueiro competente faria meu corpo em pedacinhos,  distribuídos às presentes, que então os comeriam. Contudo, preocupações de ordem sanitária e legal me ocorrem.

Uma cremação já estaria de bom tamanho. Após, na saída, cada uma das viúvas receberia um bocadinho de cinzas, que espalhariam pelas faces cansadas. A imagem me parece até mais poética do que a alternativa canibal, embora esta ganhe em dramaticidade e grotesco, aspectos que sempre estiveram presentes em minha literatura. Mas a longa sucessão de mulheres despidas, a não ser pelos véus muito negros, os corpos trêmulos de tanta dor, a camada de cinzas em suas faces riscada pelas lágrimas que não podem conter é uma imagem mais propícia a um funeral cristão.

E aí nada mais haverá de mim. Uma reduzida obra que logo será esquecida, uma diminuta biblioteca que acabará vendida a preço de banana para algum sebo, uma pequena coleção de discos que espantará quem a manuseie pela aparente disparidade entre os itens constituintes serão os únicos vestígios de minha passagem pelo reino dos vivos. Por algum tempo eu viverei ainda nos corações de minhas viúvas, mesmo as que já haviam me esquecido terão a lembrança reavivada pelo funeral. Mas isto rapidamente passará. Logo elas retornarão a suas vidas reais e a mim não restará melhor sorte que a cova funda da obliteração.

Ainda bem.

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